Entre 1973 e 1978, a escritora e psicanalista Betty Milan morou em Paris onde fez análise com Jacques Lacan, que subverteu a psicanálise, devolvendo-a à virulência de seus primórdios.
Foi um processo vigoroso, que redirecionou a vida e os estudos de Betty, inspirada a escrever o livro “O Papagaio e o Doutor” (Record) e a peça “Adeus, Doutor“, adaptada para o cinema nos EUA e que ganha agora uma montagem no teatro Jeffrey and Paula Gural, em Nova York, em cartaz até 3 de novembro.
Com o título “Goodbye, Doctor”, o espetáculo acompanha a trajetória de Seriema, brasileira descendente de imigrantes libaneses que, depois de sofrer dois abortos espontâneos, se divorcia do marido e se refugia em Paris. Lá, conhece Lacan, com quem inicia uma análise aprofundada, que lhe permite descobrir os segredos enterrados em seu inconsciente, denominado na peça como “The Voice”.
“O texto é estruturado em torno das sessões e mostra claramente como Lacan trabalhava”, conta Milan, que, para a montagem americana, retrabalhou a dramaturgia com Robert McKee, especialista em escrita criativa que reforçou a questão de gênero.
O nome da protagonista foi inspirado em uma ave comum no Cerrado, especializada em limpar terrenos. “Aqui Seriema é a personagem que não consegue ser mãe. É uma mulher complexa, vítima da xenofobia graças à descendência árabe e também de ‘autoxenofobia’, que a impede de conhecer a maternidade”, diz a psicanalista. “A personagem tem algo de andrógino e só aceita a feminilidade graças à análise.”
Escrita em 2008, “Adeus, Doutor” recebeu diversas leituras dramáticas antes de chegar ao palco, como a que reuniu a atriz Bete Coelho e o encenador José Celso Martinez Corrêa em 2010.
“Vivemos um momento crucial, histórico e político, para trazer aos palcos americanos essa peça. A palavra dela tem um poder visceral. A subjetividade feminina é revelada por meio da personagem que eu interpreto, Seriema”, diz a atriz brasileira Barbara Riethe, também produtora do espetáculo em parceria com a companhia Psykout! Theatre, fundada pelo ator, músico e produtor americano Ian Melamed, intérprete da voz do inconsciente.
“Falar de imigração, da cultura brasileira e do empoderamento feminino nos EUA hoje é dar voz a muitas outras mulheres e expor, pelo teatro, a luta pela liberdade de ser quem se é.”
Barbara é dirigida por outra brasileira, Débora Balardini, fundadora do único grupo de teatro brasileiro em atuação em Nova York, o Group Dot BR. Também é reconhecida por seu trabalho humanitário dedicado ao empoderamento das mulheres.
Com a montagem, elas vivem o desafio de desvendar os mistérios de Lacan, interpretado pelo americano Jerry Topitzer. Já a personagem Maria, que criou Seriema e a relembra de suas origens e espiritualidade, é vivida pela jamaicana Dianne Dixon.
“Lacan subverteu a psicanálise com a ideia de que o inconsciente é estruturado como linguagem. Subverteu também a teoria e a prática. Antes dele, o analista interpretava atribuindo um significado ao que o paciente dizia. Lacan cortava a fala do analisando em um determinado ponto e deixava que ele interpretasse o corte”, diz Milan.
Quem se analisava com ele não era um paciente, mas um analisando, devia fazer a própria análise, se debruçar sobre o ocorrido na sessão para rememorar a sua história e evitar que ela se repetisse”, segue ela, que incentivou a figurinista Sarah Constable a criar modelos reveladores da transformação de Seriema a partir da releitura brasileira de peças criadas por ícones como Yves Saint Laurent e Coco Chanel. “No início, ela veste calças compridas e, no final, já está de vestido.”
A revolução lacaniana influenciou não apenas os temas escolhidos por Betty, mas também seu estilo, especialmente a oralidade. “Meus textos são rápidos, escritos para serem ouvidos”, diz ela, que aprovou a versão cinematográfica de Richard Ledes, que se inspirou no clássico filme mudo “A Paixão de Joana D’Arc“, dirigido por Carl Theodor Dreyer em 1928.
“Já a peça tem uma grande dramaticidade”, diz, decidida a não manter mais Lacan como norte de seu trabalho. “Foi um périplo que durou 50 anos. Acho que agora acabou.”