De uma casa vistosa em construção no meio da Amazônia, o poeta Charles Trocate lidera o principal movimento da região contra o que chama de abusos ambientais e sociais de grandes e pequenas mineradoras no Brasil, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração, mais conhecido como MAM.
Morador de um assentamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) da década de 1990 em Parauapebas (PA), Trocate busca ampliar a influência de comunidades que vivem ao redor de minas nas políticas públicas voltadas ao setor, sobretudo no Pará, onde estão alguns dos maiores empreendimentos minerários do país.
Devido à busca por metais da transição energética, o estado concentra um terço dos investimentos da mineração no país e já disputa a hegemonia do setor com Minas Gerais. Mas se de um lado a presença de grandes mineradoras na região promove o desenvolvimento econômico de cidades até então remotas, por outro escancara conflitos fundiários existentes há décadas.
“Carajás é um mosaico de vidas, de biodiversidades e de povos originários. Ao se espraiar, a mineração interrompe economias naturais agrárias, turísticas e da água. E, no nosso caso, ela também interrompe a construção de assentamentos”, diz Trocate, citando a região paraense que hoje abriga as principais minas do estado.
O Pará é o estado com mais assentamentos no país: 1.149, segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Foi na região, aliás, que aconteceu o massacre de Eldorado de Carajás, em 1996, quando policiais mataram 19 trabalhadores sem-terra em uma manifestação.
E são frequentes também os conflitos envolvendo assentados, indígenas e mineradoras na região. O Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil contabiliza 351 ocorrências de conflitos no Pará –a maior parte vem de garimpeiros (165), mas mineradoras aparecem em 140 ocasiões. Do total de ocorrências, 119 envolvem indígenas e 13, assentados.
No governo de Jair Bolsonaro, o Incra reduziu parte de um assentamento onde moram 420 famílias perto de Altamira para favorecer um projeto de extração de ouro da mineradora canadense Belo Sun. O caso foi parar na Justiça, e em fevereiro o Ministério Público Federal disse ser favorável à anulação do acordo.
Também no governo Bolsonaro, o Incra publicou uma nota técnica que regula empreendimentos minerários dentro de assentamentos, o que na visão de movimentos sociais autoriza mineradoras a operarem em áreas antes incompatíveis com a atividade. “Nós fizemos a luta pela terra durante anos e de repente começamos a perder território para os empreendimentos minerários”, diz Trocate.
Na mesma linha, em 2008, o governo federal acusou a Vale, maior mineradora do país, de invadir assentamentos no sudeste do Pará para instalar o projeto Onça Puma, de extração de níquel. Ao fim, o projeto avançou e hoje é um dos principais da mineradora na extração do mineral, importantíssimo para a fabricação de baterias de carros elétricos. Só no ano passado, a Vale extraiu 17 mil toneladas de níquel na região.
Desde então, as operações no complexo já foram suspensas várias vezes pela Justiça. A mais recente foi entre fevereiro e junho deste ano, quando o governo do Pará acusou a mineradora de descumprir requisitos ambientais e causar impactos na vida dos povos indígenas Xikrin e Kayapó.
A suspensão veio junto com a de outra mina da Vale: a Sossego, em Canaã dos Carajás, onde a mineradora extrai cobre, mineral crítico para a fabricação de fios elétricos. Lá, 350 famílias de uma vila a 1.500 metros da mina reclamam há anos dos impactos das explosões no complexo.
“Somos incomodados por poeira, detonação e ruídos das máquinas, além do medo da barragem do projeto”, diz Isaque Barboza, 48, morador da Vila Bom Jesus. O caso foi discutido no STF em junho.
Em junho, a empresa firmou acordos com o estado do Pará e com a secretaria ambiental do estado para restabelecer as licenças de operação das minas Onça Puma e Sossego. A mineradora afirma, em nota, que a assinatura do pacto encerra controvérsias judiciais com grupos afetados.
A empresa também disse manter rígidos controles ambientais de todas as suas atividades, entre eles, o monitoramento da qualidade do ar, da água, ruido e vibração em suas operações. E afirmou não realizar atividades de pesquisa mineral ou lavra em terras indígenas. “A Vale está comprometida com uma relação de respeito, diálogo e escuta ativa com as comunidades vizinhas às suas operações.”
A mineradora tem planos de expandir sua produção de cobre na região e comprou um terreno em frente à área de plantação coletiva da comunidade. “Quando os guardas viram que eu os notei, saíram correndo”, diz Edson Luis Pereira Ramos, 52, ao relembrar um caso de julho. Uma audiência pública sobre o novo projeto da empresa está marcada para quinta-feira (31).
Os moradores também têm medo de um eventual desastre, aos moldes do que aconteceu em Minas Gerais. A barragem de rejeitos de Sossego é quase 12 vezes maior do que a que rompeu em Brumadinho e duas vezes a de Mariana. Além disso, o dano associado a um rompimento da estrutura seria o máximo possível –a ANM (Agência Nacional de Mineração) considera que existem pessoas ocupando permanentemente a área afetada a jusante da barragem e que, portanto, vidas humanas poderiam ser atingidas.
Com ajuda do Ministério Público, os moradores da Vila Bom Jesus querem que a Vale os indenize ou os leve para outra região, afastada de minas. Isso foi feito quando a mineradora construiu o S11D, um dos complexos de minério de ferro mais modernos do mundo, em operação desde 2016 em Canaã.
Este último é um dos raros exemplos de grandes empreendimentos com sucesso socioambiental na região. A Folha conversou com técnicos que já participaram de licenciamentos e todos foram categóricos quanto à rigidez ambiental do complexo, localizado dentro da Floresta Nacional de Carajás.
“O S11D é um tipo de mineração completamente diferente do que a gente vê em Minas Gerais. Além de não ter barragem de rejeito, ele não tem caminhão na área de mina e é todo mecanizado, com grandes estruturas sendo controladas em uma casa de comando, tudo por computador. Isso evita situações de risco”, diz Suely Araújo, ex-presidente do Ibama responsável por assinar a licença de operação do empreendimento em 2016.
Especialistas dizem que a inovação tecnológica e ambiental do complexo foi possível graças à qualidade do minério de ferro extraído no local, o que garante à mineradora a possibilidade de cobrar mais caro pelo preço do mineral. Como a Folha já reportou, o minério de ferro da região tem altíssimo teor e é cobiçado pela indústria do aço para diminuir sua pegada de carbono.
“Em Carajás existem cerca de 30 espécies endêmicas raras e ameaçadas, portanto o maior desafio é viabilizar a mineração sem ocasionar uma extinção global de espécies”, afirma André Vieira, chefe do ICMBio na região. Isso fica mais evidente na mina da Vale em Parauapebas, em operação desde a década de 1980. “Lá não há mais tantas alternativas locacionais, o que torna a busca pela conciliação mais complexa.”
“A mineração, em qualquer situação, requer esses cuidados que os órgãos ambientais têm, mas a própria existência de uma unidade de conservação significa que ela é uma área prioritária”, diz Bruno Sander, analista ambiental do Ibama responsável por fazer as fiscalizações periódicas nos complexos de Carajás.
Mas se é possível contornar problemas ambientais a partir de tecnologias inovadoras, evitar conflitos sociais é mais difícil para a mineração. Para alguns especialistas, esse é um dos motivos de o setor encontrar menos problemas burocráticos na Amazônia do que em Minas Gerais. Isso porque, apesar de a região registrar centenas de conflitos, os de MG tendem a afetar mais pessoas.
“Qualquer coisa que você faz na Amazônia tem impacto, mas se a empresa conseguir fazer um empreendimento minerário com uma área muito bem delimitada, evitando que transborde para fora, ele talvez não tenha um impacto tão grande”, diz Julio Grilo, ex-superintendente do Ibama em MG. “Já em Minas Gerais, a mineração está concentrada onde vive a maior parte da população do estado e onde as características são únicas.”
Em MG, explica, o minério tende a estar concentrado no alto dos morros, a 1.500 metros do nível do mar, enquanto as cidades estão no fundo dos vales a 900 metros. Já a Amazônia tem relevo plano e comunidades mais dispersas. Eventuais rompimentos, portanto, tendem a ser mais danosos para os mineiros.
Para quem é afetado, porém, pouco importa qual lugar é mais povoado. Não à toa, movimentos sociais amazônicos têm aumentado a interlocução com grupos de fora da região para evitar que a busca por metais críticos para a transição energética abale a vida de quem vive na floresta. O MAM, por exemplo, recebeu em julho ativistas de outros estados do Brasil e de alguns países da América Latina para discutir o tema.
“Estamos em um ambiente, até então, de posseiros, colonos, seringueiros e ribeirinhos, que agora está virando uma Amazônia modernizada da tecnociência. Isso cria um conflito entre a demanda das commodities e a sobrevivência dos povos da floresta”, diz João Palheta, professor da UFPA e um dos principais pesquisadores de conflitos minerários na região.