Criada com um centro de umbanda nos fundos de casa, ainda assim fui batizada, fiz primeira comunhão e crisma. Ouvia de minha mãe, cavalo de Preto Velho e de Pombagira, que conhecer a crença da maioria da população era importante para minha formação, a mesma que ela teve até encontrar seu caminho numa religião de matriz africana, que agrega o culto aos orixás, aspectos do catolicismo, do espiritismo kardecista e de cultos indígenas brasileiros.
Não era incomum passar a noite de sábado vestida de branco, impregnada pelo cheiro de defumação e de arruda, repetindo os pontos da umbanda, cânticos sagrados que preparam o ambiente para que as entidades façam a sua chegada em harmonia com o plano espiritual. A manhã de domingo, era reservada ao banco da igreja, ainda que fugisse da comunhão e da confissão, desde que decidi que apenas eu poderia determinar se meus pecados eram pecados e parei de atormentar o espírito pelos prazeres da carne.
Mas gosto de igrejas, apesar de não ser de igrejas, de santos e de orações e de flertar com o proibido com mais frequência do que gostaria e de me entregar a ele sem que a consciência fique deformada. Mesmo distanciada de qualquer prática religiosa, até hoje me pego cantarolando pontos do saravá antes de mergulhar no mar ou quando caminho pela natureza, como se pedisse licença às entidades para que me recebam e me abençoem. E rezo. Muitas vezes com palavras que não estão nos livros sagrados, mas que conversam com meu coração atormentado. Fé ganhou um significado particular na vida adulta.
Há uma semana não me saem da cabeça algumas músicas que embalam o trecho do Círio de Nazaré, onde Fafá de Belém finca sua base. Com a Varanda, que pelo 14º ano recebeu convidados para acompanhar essa que é uma das maiores procissões católicas do mundo, Fafá colocou o Círio no circuito de grandes eventos do calendário nacional, como o Carnaval, as comemorações de Iemanjá, em Salvador, a festa de Parintins.
O envolvimento de uma das maiores cantoras do Brasil, devota de Nossa Senhora de Nazaré, traz prestígio ao Círio, que acontece em Belém e receberá a COP30 (conferência sobre as mudanças climáticas). O que encontrei superou o que eu imaginava de um evento religioso. Estavam lá os pagadores de promessa, ex-votos em diversas formas, como pinturas, partes do corpo feitas de cera, casinhas de papelão, reflexo da devoção e da gratidão dos fiéis. A procissão se arrasta por dias, pelo mar e pelas ruas de Belém. Leva, além de católicos, candomblecistas, crentes pentecostais, ateus e não religiosos, que prestigiam a expressão coletiva da crença.
Não presenciei uma confusão, apesar da estimativa de dois milhões de pessoas, apenas uma massa de pessoas em harmonia. Fafá parece estar conectada a cada uma por uma energia invisível. Ela canta, puxa a reza, pede água para os romeiros, grita por passagem para a Cruz Vermelha, que leva os desmaiados pelo calor e pela fé. Uma maestrina que combina liderança e sensibilidade para que a comunhão seja completa. E eu que não sou de igrejas, de santos, de rezas, passei um fim de semana desejando “Feliz Círio” a desconhecidos, engolida por sentimentos subestimados: paz, empatia, carinho, amor. Recomendo.
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