Quando desembarquei no aeroporto de Cumbica, voltando do Festival de Cinema de Veneza, passei sem pressa pelo free shop. Meio zonza com a mistura de perfumes, chocolates, eletrônicos, lingeries, bebidas e cosméticos, só conseguia pensar se precisava mesmo de alguma daquelas coisas.
Não ia ter ninguém me esperando. Afinal, a única pessoa que poderia fazer isso —um gesto que considero apenas desconfortável— seria meu marido. Mas, logo nos primeiros anos de casamento, combinamos de abolir essa liturgia. Economizamos muitos sorrisos forçados, noites interrompidas e longos trajetos ao aeroporto.
Acabei fazendo uma comprinha naquela manhã: quatro latas de sardinhas portuguesas, para os gatos da família. Dorival, o meu gato mais velho, e Mimi, Pitu e Ida, os mais novos, com três, dois e um ano, respectivamente. Ia arrasar chegando em casa com presentes.
Mas assim que as portas automáticas do desembarque se abriram, vi meu marido. E, se ele estava ali, só podia ser porque o Dorival não estava mais. Nada precisou ser dito.
Dorival, Dodô, Duli e tantos outros apelidos, tinha 18 anos e meio e um coração enfraquecido, que fazia com que sua cavidade pulmonar acumulasse líquido, dificultando a respiração. Eram cada vez mais frequentes as idas ao PS veterinário. Para a drenagem, uma agulha de 10 centímetros era enfiada entre as costelas dele, e sacolas cheias de líquido fosco saíam lá de dentro.
Ele nunca reclamava, nunca dificultava o trabalho de quem fazia o procedimento. Voltava da sala de cirurgia aliviado e carregado, invariavelmente, por uma veterinária encantada por ele.
Conheci o Dorival em 2006, em Washington, onde morávamos. Foi no mesmo ano em que decidimos ter filhos. O plano inicial era hospedar uma gatinha com ninhada, para acostumar a casa com nenéns. Mas, no dia em que visitei a Humane Society, dei de cara com Licorice, como batizaram o meu gatinho, encontrado com menos de três meses, revirando um lixo.
Pedi para vê-lo de perto, peguei-o no colo, e ele dormiu de barriga para cima. Foi uma paixão imediata e avassaladora. Licorice virou Dorival. Não por causa de Caymmi, mas em homenagem a um personagem do Jô Soares, cuja graça talvez não caísse bem nos dias de hoje. “Dorival, meu filho, é uma fera”, dizia o Jô. “Tem pai que é cego”, comentava o ator Paulo Silvino, seu ‘side kick’ na esquete.
A convivência com o meu Dorival foi a prova definitiva de que amor à primeira vista pode, sim, durar para sempre. Eu sabia que ele estava morrendo, e sabia que a morte dele estava no pacote ‘adotar um bicho’. Não é como ter filhos. Os filhos, se tudo der certo, sofrerão a perda dos pais. Tem gente que diz até que ter bicho é bom por isso mesmo, treina a gente a lidar com a perda. E que a melhor coisa a se fazer quando morre um bicho é pegar outro, para substituí-lo.
Não há muito o que possa ser dito diante da ignorância humana. Mas, também, não tem como consertar essa ignorância, típica do resto do mundo, que não conviveu com o Dorival. O meu Dorival, esse sim, era ímpar. E agora fiquei eu aqui, tentando empurrar com a barriga essa minha vida sem ele. Rodeada de gente, de outros gatos, muitas coisas a fazer, uma lista que parece aumentar a cada dia que passa, o tempo que não para de acelerar.
Tudo tão parado. Tudo tão vazio.
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