De frente para o espelho disse para mim mesma “não quero ser mãe”. Foi como se finalmente eu pudesse me liberar de um roteiro de vida que não era para mim. De um lado, uma mulher um pouco aflita por assumir o que ela já sabia há tempos. Do outro, o reflexo da maturidade e da segurança para quem estava muito confortável com o que não queria. Uma só precisava contar para a outra. E quando ouvi minha voz sair sem hesitar, sem tremer ou se engasgar, foi um alívio. Tive vontade de me abraçar e me agradecer por ter tido espaço e tempo para decidir. E não ter sido pressionada por ninguém, nem por meus pais.
Talvez por isso, só recentemente, ao ler uma reportagem sobre o luto silencioso daqueles que não se tornaram avós, pensei neles. E me consumi em culpa, não pela decisão de não ter filhos, mas por nunca ter perguntado se eles gostariam de viver essa experiência. Além de mim, meus dois irmãos também foram pelo mesmo caminho, apenas por coincidência e circunstâncias da vida, e não por pacto para ajudar a descarbonização do mundo.
Eu não me lembro de uma única vez que meus progenitores tenham feito qualquer cobrança. Do meu pai, carrego um conselho valioso: “não dependa de ninguém, nem emocionalmente nem financeiramente”. Isso me salvou de pensar em maternidade com sujeitos que só valiam o orgasmo. De minha mãe, tenho o exemplo da mulher independente e livre que ela me inspirou a ser. Portanto, senti que pudesse ter sido egoísta em não pensar neles, ainda que essa cobrança tenha surgido de uma culpa inédita até então.
As histórias estão sendo reescritas com outros enredos. Casais sem filhos, mulheres solteiras por opção, avós sem netos, famílias com configurações múltiplas. Ainda assim, a pauta da avosidade compulsória é rara e passa pela complexidade de incluir na mesma decisão vidas que nem sempre têm os mesmos planos. A regra é que depois dos filhos, viriam os netos, mas os idosos do século 21 também não são o estereótipo que se espera deles, uma aposentadoria sem muitos propósitos, na qual só lhes restava viver para a família.
Assim como não discuti com os meus pais o impacto afetivo que uma vida sem netos teria para eles, vejo que a maioria das pessoas também não questiona se os seus estão dispostos a assumir o ônus da maternidade ou paternidade de seus filhos, ao menos não em tempo integral. Vemos cada vez mais, principalmente avós viverem uma segunda maternidade, com obrigações, compromissos e horários, quando se comprometem a participar de uma rede de apoio, muito necessária, mas nem sempre desejada.
Se como família não teremos a experiência de ver crianças correndo pela casa, percebo que nossos laços se estreitaram de outra forma. O tempo que tenho com meus pais é apenas nosso. Eles se tornaram meus grandes amigos, com quem ainda tenho experiências novas, conversas profundas e rotinas que pouco mudaram. Sempre que minha mãe me liga, ouço em sua voz a alegria que me abraça como um casaco quente numa manhã fria e ensolarada de domingo. Quis saber se a falta de netos lhes causava algum vazio. A resposta foi um vídeo dela na Bahia, dançando com suas amigas.
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