No ano em que Brasil e Itália ocuparam o centro dos palcos internacionais, com as respectivas presidências do G20 e do G7, seus líderes devem deixar em segundo plano eventuais diferenças políticas, em nome de interesses estruturais e complementares dos países. A avaliação é do diplomata italiano Michele Valensise, embaixador em Brasília de 2004 a 2009.
Se, nos anos de oposição, a primeira-ministra Giorgia Meloni, da ultradireita, fez uma série de críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desde quando chegou ao poder, em 2022, mantém publicamente uma boa relação institucional com o petista. No ano passado, recebeu Lula na sede do governo, em Roma. Em junho, esteve como convidado na reunião de cúpula do G7, na Puglia.
No G20, os dois se cumprimentaram de forma amistosa e se reuniram às margens da cúpula, em encontro no qual Lula falou a Meloni da necessidade de melhorar o serviço prestado pela Enel, concessionária responsável pela distribuição de energia elétrica em São Paulo.
Finda a reunião no Rio, a premiê está agora na Argentina, liderada pelo ultraliberal Javier Milei, desafeto de Lula. Milei e Meloni compartilham relações amigáveis com o republicano Donald Trump, eleito para voltar à Casa Branca. “Meloni poderá desempenhar um papel importante, especialmente se conseguir se mover num quadro europeu”, afirma Valensise à Folha, em entrevista por escrito.
Além de embaixador no Brasil, o diplomata foi secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores italiano (2012-2016). É presidente do centro ítalo-germânico Villa Vigoni e se prepara para assumir, no início de 2025, a presidência do Instituto de Relações Internacionais (IAI), em Roma.
Como o sr. define o atual cenário internacional?
Atravessamos uma fase de graves tensões e de forte instabilidade, marcada em particular pela contínua agressão da Rússia contra a Ucrânia e pela sangrenta ofensiva de Israel em Gaza e no Líbano, após o massacre de 7 de outubro do Hamas. Em primeiro lugar, é necessário um cessar-fogo, junto com uma estabilização de todo o quadro internacional.
Que impacto terá para a Europa a volta de Donald Trump à Casa Branca? O quão o sr. está preocupado?
As consequências dessa eleição terão de ser verificadas nos fatos, e não com base em anúncios. No entanto, a Europa deve reforçar a sua ação, especialmente em temas de defesa e comércio.
Qual papel poderá ter a primeira-ministra Giorgia Meloni, dada a sua relação com os republicanos e com Elon Musk?
Giorgia Meloni poderá desempenhar um papel importante, especialmente se conseguir se mover num quadro europeu.
Para a UE, aumenta o risco de fragmentação e enfraquecimento com Trump presidente?
O imperativo para a União Europeia é reforçar a própria coesão. Os países-membros não têm nenhum interesse em enfrentar o diálogo com os EUA de maneira dispersa.
A instabilidade interna na França e na Alemanha representa outro elemento para uma “tempestade perfeita” nos próximos meses?
Tanto a França quanto a Alemanha estão vivendo momentos difíceis, mas ambas têm a capacidade e os recursos para superá-los.
Como o sr. vê a atual relação entre Brasil e Itália? O que mudou desde quando estava em Brasília?
As relações continuam estreitas e promissoras, mas podem ser relançadas com base em interesses comuns significativos, como foi recentemente destacado pela visita de Estado ao Brasil do presidente Sergio Mattarella, em julho. Os pilares das nossas relações, como a presença de uma importante e bem integrada comunidade italiana e de origem italiana e o dinamismo dos nossos negócios, permanecem sólidos e não mudaram.
A falta de afinidade política entre a primeira-ministra Meloni e o presidente Lula impede uma maior sintonia entre os dois grupos? Podia ter sido feito mais?
A maior ou menor contiguidade política entre governos democraticamente eleitos deve ficar em segundo plano, diante de interesses estruturais, muitas vezes complementares, dos países. Me parece que nossos dois líderes, Lula e Meloni, têm plena consciência disso.
Em janeiro, o sr. escreveu que faltava “interpretar o exato posicionamento internacional do Brasil, ávido por retornar plenamente ao cenário mundial”. Depois de dez meses, como avalia a política externa brasileira?
É a política de um grande país que quer fazer ouvir melhor a própria voz internacionalmente, não abre mão do pragmatismo e acredita no multilateralismo.
A volta de Trump pode ameaçar os resultados do G20 brasileiro e o protagonismo do Brasil na América Latina?
O Brasil sempre soube manter uma relação equilibrada com os EUA, independentemente da cor política da administração em Washington, por exemplo com George W. Bush durante o primeiro mandato de Lula. É de esperar que aconteça o mesmo com a administração de Donald Trump, no interesse de ambos os países, com um realismo saudável.